sábado, 26 de novembro de 2011

Sobre a interdependência

Você teve uma discussão séria com alguém na noite passada, disse coisas que não deveria ter dito e foi dormir muito chateado. Por isso você não dormiu bem e, por isso, acordou alguns minutos depois do que de costume. Então você se levantou, lavou o rosto, tomou o seu café, apanhou suas chaves e, quando você estava saindo da garagem, um ônibus desgovernado passou a centímetros do seu carro antes de se chocar contra um poste. Caso ele o tivesse atingido, você não teria nenhuma chance de sobreviver, mas você escapou porque estava alguns minutos atrasado. Porque não dormiu bem. Porque discutiu com alguém. E aí você começa a se perguntar se aquela discussão não teria salvado a sua vida. Os acontecimentos da noite passada, organizados num equilíbrio perfeito, fizeram com que você sobrevivesse. Se você não tivesse discutido com aquela pessoa, suas tripas estariam espalhadas no asfalto, mas não; você está vivo.

Num outro dia, você acordou muito cedo porque tinha uma viagem internacional marcada para aquela manhã. Ao cruzar um semáforo, você acelerou no sinal amarelo em vez de parar e esperar pelo vermelho. Por isso, você chegou um minuto mais cedo ao aeroporto e, ao fazer o check-in, a atendente lhe ofereceu a possibilidade de mudar a passagem para um outro voo que decolaria trinta minutos antes. Uma ótima ideia, você pensou, e aceitou a oferta, sem saber que aquele avião específico sofreria uma pane elétrica e cairia sobre o mar logo após a decolagem. Antes do fim derradeiro, durante os breves momentos de lucidez entre a descompressão e o choque contra a água, você se pergunta se o fato de ter ultrapassado aquele sinal amarelo não teria destruído a sua vida. Os acontecimentos daquela manhã, organizados num equilíbrio perfeito, fizeram com que você morresse. Se você não tivesse acordado tão cedo, se você tivesse parado no semáforo e se a atendente não tivesse lhe oferecido a troca de passagem, você estaria num outro avião lendo um jornal e tomando uma taça de vinho branco, mas não; você está morto.

Pense por um momento sobre a complexa engenharia de possibilidades que foi necessária para que você viesse a estar exatamente onde está agora. Pense em tudo o que poderia ter acontecido se você mudasse um detalhe do seu passado. Apenas um detalhezinho, você poderia pensar, mas um detalhe que poderia iniciar toda uma reação em cadeia. Você acorda um minuto mais tarde, e está vivo; você acorda um minuto mais cedo, e está morto.

Algumas pessoas atribuem esses fluxos de acontecimentos a Deus, a deuses, ao karma ou simplesmente ao destino. Ou ao caos. Todas essas interpretações são belas, cada uma a sua maneira. Talvez haja um deus tomando conta de tudo isso, e talvez não haja, mas, de qualquer forma, tudo está relacionado, emaranhado para o bem, para o mal, ou para ambos. Essas questões fazem a gente pensar sobre como as coisas estão relacionadas umas às outras, por mais que, a princípio, não consigamos perceber toda a interdependência contida na existência. E não apenas na existência humana, mas no próprio balé do cosmo e na configuração da matéria que nos dá forma.

Estou longe de ser um especialista em física quântica, mas, vez ou outra, gosto de acompanhar o que os físicos andam fazendo por aí. Não tenho dados precisos, mas recentemente acompanhei o resultado de um experimento publicado, por meio do qual cientistas descobriram que alguns fótons (as partículas elementares da luz) têm “irmãos gêmeos”, os quais, apesar de não se encontrarem fisicamente interligados, têm a capacidade de reagir a estímulos sofridos pelo outro “irmão”. Assim, se você estimular um fóton, o outro sofrerá o mesmo estímulo, estando ele a alguns milímetros, quilômetros ou – teoricamente – do outro lado do universo. Relativizando (com muita liberdade poética), é o mesmo que pegar duas maçãs, deixar uma num lado de uma sala, levar a outra até o outro lado, mordê-la e perceber que a outra – aquele que ficou sozinha no outro lado – também foi mordida. Esse experimento com os fótons “irmãos” mostra uma interdependência entre as partículas que os físicos não conseguem explicar; definitivamente há algo que os une, mas ainda não é possível determinar o quê.

De uma maneira ou de outra, também estamos nós todos interconectados, seja pelas relações causais de ação e reação, ou por nossa constituição quântica. Na literatura budista, a dialética do Sutra do Diamante diz que “A não é A. Por isso, ele realmente é A.” Esse conceito se torna mais claro a partir da explicação do monge vietnamita Thich Nhat Hahn (em sua obra A essência dos ensinamentos de Buda, publicada no Brasil em 2001): “Uma flor não é uma flor. Ela é composta de elementos não-flor, como o sol, as nuvens, o tempo, o espaço, a terra, os minerais, os jardineiros etc. Uma verdadeira flor contém em si o universo inteiro. Se devolvermos qualquer destes elementos à sua origem, não existirá mais a flor. É por isso que podemos dizer com segurança: ‘Uma rosa não é uma rosa. Por isso, ela é uma autêntica rosa.’ Temos que eliminar o conceito de rosa se quisermos tocar a verdadeira rosa.”

Como diz o autor, para que uma flor seja uma for é preciso um equilíbrio perfeito de elementos supostamente alheios à flor – mas que na verdade não o são. Todos nós estamos inseridos nesse mesmo equilíbrio, de forma que, sob última análise, é impossível determinar o fim e o começo de qualquer coisa que seja. Você não é você. Você é todo o resto. Por isso, você é você. O todo está na unidade assim como a unidade está no todo. (G.P.)

domingo, 20 de novembro de 2011

Sobre coisas que você joga fora, versos reencontrados e "para sempre"

Às vezes as gavetas ficam cheias demais. Durante anos, você vai acumulando todo tipo de coisa – algumas mais importantes que outras – e chega um momento em que você precisa jogar algo fora. Geralmente, isso me causa um certo desconforto. Não pelo ato em si, mas pelo que ele representa. Em algum momento, você guarda; em outro, você joga fora. A cada uma dessas limpezas, de certa forma, você joga fora algo de si mesmo, e é assim que as coisas são.


Eis que eu estava limpando uma gaveta recentemente, relendo algumas anotações sobre fatos que hoje já não têm a mínima importância e lotando a lata de lixo, quando encontrei uma cópia impressa de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, um poema sobre a seca na região Nordeste do Brasil que eu estudei numa aula de Gêneros Literários há alguns anos. Sinceramente, não foi um poema do qual eu gostei – o tema não é dos meus favoritos –, mas três versos chamaram a minha atenção de forma especial. Na época, inclusive, eu rabisquei “wow! \o/” ao lado deles.


Os versos diziam:

Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Na época, essas palavras soaram muito verdadeiras, e ainda soam. Sonhos não são espessos, são coisas finas, delicadas, frágeis. Frágeis como bolhas de sabão. Frágeis como coisas que as pessoas dizem. Às vezes eles são tão frágeis que são capazes de destruir a si mesmos...

E por falar em coisas que as pessoas dizem, ontem eu assisti ao filme Under the Hawthorne Tree (山楂樹之戀), de Zhang Yimou. Uma obra de arte, como eu já esperava.


A narrativa se passa durante a Revolução de Mao, na China, época em que a jovem Jing é enviada ao campo para passar por um processo de reeducação junto aos camponeses, como era costume no regime Maoísta. Lá, ela se apaixona pelo filho de um membro do partido comunista, com o qual ela não pode se envolver. Uma vez que seu pai é um preso político e eles vivem numa sociedade em que os antecedentes familiares são muito valorizados, outro passo em falso poderia prejudicar o futuro de toda a sua família. Assim, Jing e o rapaz vivem um amor inocente e secreto. Porém, ainda que esteja disposto a esperá-la enquanto for necessário, ele é acometido de uma leucemia que o vitima rapidamente. E é aí que surgem as coisas que as pessoas dizem... Suas últimas palavras, as quais ele não chega a dizer verbalmente, são:

‎"我不能等你一年零一個月了, 也不能等你到二十五歲了, 但是我會等你一輩子。"
(Eu não posso esperar por você por um ano ou um mês, e não posso esperar até que você tenha 25 anos, mas eu vou esperar por você durante minha vida inteira.)

"Vou esperar você durante minha vida inteira" é uma coisa maravilhosa para se dizer – ainda que a vida dele tenha sido muito curta. No final das contas, uma "vida inteira" e "para sempre" são o mesmo: tudo o que se tem diante das incertezas da eternidade. E, tal qual os sonhos e as coisas que as pessoas dizem, o "para sempre" também é frágil. Não há "para sempre" que dure para sempre. (G.P.)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

sábado, 15 de outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sobre o homem que viajou no tempo




Ele havia sido o primeiro homem a viajar no tempo. E, então, lá estava, diante de si mesmo quando ainda era um garotinho, não mais do que cinco palmos acima do chão, olhando para ele cheio de curiosidade autêntica, como se, de alguma forma, fosse capaz de reconhecer a si mesmo várias décadas mais velho. Como se soubesse o que aquilo significava.

Como havia sentido saudades de si mesmo... Quando havia sido a última vez em que fora tão inocente? Tão capaz de alimentar as próprias fantasias? Tão feliz, talvez – ou ao menos algo próximo a isso? Ah, como ele gostaria de contar a si mesmo tudo o que iria acontecer, prepará-lo para as escolhas que teria de fazer e os erros que iria cometer. “Ah, se você soubesse...”, pensava ele, “se você pudesse saber antes.”

Mas ele não podia. Havia regras bem claras sobre isso: as pessoas só podem saber o que deveria ter sido feito depois que a possibilidade de fazer algo diferente já passou. Nada de segundas chances para aqueles que viajam no tempo. É assim que as coisas funcionam, e por isso não havia nada que pudesse ser dito.

O garotinho olhou para si mesmo e deu um passo à frente. O homem mais velho abaixou-se e os dois se olharam por um breve momento. Mesmo sem dizer nada, eles sabiam o que cada um estava sentindo. Dentro de cada um deles, havia algo do outro: um pouco do passado no futuro e, se é que era possível, um pouco do futuro no passado.

Ainda em silêncio, o garotinho tocou a barba do homem, e depois puxou de leve a sua gravata, achando graça naquilo que iria se tornar. E o homem abraçou o corpinho pequeno e frágil com todo o carinho, sabendo o peso de cada uma das escolhas que ele iria fazer até que decidisse voltar para aquele dia.

Sem dizer nada, eles apenas sorriram. Pelo mesmo motivo? Por motivos diferentes? Nenhum dos dois poderia dizer verdadeiramente. E, então, cada um seguiu seu caminho. O mesmo caminho, mas caminhos diferentes, um dia de cada vez. (G.P.)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

About life

How many things have you left behind since you arrived this world? Who would you like to be with one more time? Which memories do you keep as the most important and fragile treasure?


La Maison en Petits Cubes (2008, written by Kenya Hirata,
directed by Kuni Katō, music by Kenji Kondo)

Who are you among all these portraits, after all?

People say that when you are about to die, you can see your whole life again. I don't believe that. But I do believe there must be something that pops up in your mind before the very end. What does that little fraction of memory mean? What does it define? Maybe one will find out only when it's too damn late. (G.P.)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Sobre máscaras

Kamen, by Rin'

会えると信じてる見えない仮面取り去って
光出会う

Tossing away the invisible mask,
one faces light.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Sobre a essência de todas as coisas

"To try to find the figure in the carpet of one's writing can be as chilling as trying to find it in one's life; to weave, post facto, a figure in – 'this is what I meant to say' – is an intense temptation."

“Tentar achar a imagem na tapeçaria dos seus escritos pode ser tão desanimador quanto encontrá-la em sua vida; tecê-la, post facto – ‘era isso que eu queria dizer’ – é uma intensa tentação.”

Clifford Geertz


O que é a imagem senão a essência de uma tapeçaria?
Buscar a imagem numa tapeçaria é buscar nada menos que a sua razão de existir. Procurar a imagem, portanto, é procurar a essência das coisas.
Os escritos geralmente têm uma mensagem essencial, um cerne ao redor do qual as narrativas se constroem de modo a embasar o que foi escrito, e as pessoas têm a propensão de tecer suas vidas da mesma forma.
É daí que vem a tentação de tecer sentidos para as coisas depois que elas já aconteceram (post facto), pois é isso que nós fazemos: tecemos histórias e estórias, construindo uma imagem para a tapeçaria, esperançosos por achar um sentido maior para todas as coisas, algo que finalmente nos mostre qual é a essência da vida. (G.P.)

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Sobre O Rei Leão, o ciclo sem fim e nostalgia

Dezessete anos já ficaram para trás desde a estreia do clássico O Rei Leão, lançado pela Disney em 1994. Inspirada em Hamlet, de Shakespeare, a saga de vida e morte nas savanas definitivamente marcou o imaginário de uma geração, produzindo arrepios nostálgicos a cada vez que o Sol se levantava sobre as planícies africanas.


Por meio do personagem de Simba, o tradicional “herói que retorna”, milhares de jovens espectadores aprendiam pela primeira vez que todos os seres vivos estão interligados num ciclo interminável que abarca a todos, das gazelas mais frágeis ao mais forte leão. Aprendiam também que a morte tem um sabor deveras amargo e que, invariavelmente, as coisas vão dar errado – e algumas delas nunca poderão ser corrigidas.


Tudo isso por meio das técnicas de animação em 2D, as mesmas utilizadas em outras obras de arte como A Bela e a Fera, A Pequena Sereia e Mulan, filmes que – correndo o risco de parecer saudosista – não encontram paralelo nas obras lançadas atualmente.


Em 2011, para apresentar a narrativa a uma nova geração, chega às lojas a nova versão Diamond Edition do disco blu-ray de O Rei Leão, além da versão 3D para exibição nos cinemas, a qual eu assisti – vejam só! – na mesma sala em que, numa idade bem mais tenra, assisti ao filme original pela primeira vez. E eis que, quase duas décadas depois, pude ouvir uma nova criança chorando ao assistir à morte de Mufasa, para o deleite dos espectadores mais velhos, como eu. É clichê, eu sei, mas isso faz você se dar conta de que o ciclo sem fim, de fato, continua girando sem parar. (G.P.)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sobre multiculturalismo, sangue e o belo ato de dançar pelo mundo


É difícil entender o porquê de uma pessoa odiar o multiculturalismo. Mais do que isso, é difícil entender como tal ódio pode culminar em atitudes extremas como o atentado de 22 de julho, ocorrido em Oslo, capital da Noruega.

Motivado por um posicionamento político ultranacionalista e pela repulsa principalmente a judeus e islâmicos, o empresário Anders Behring Breivik, 32 anos, utilizou bombas manufaturadas a partir de fertilizantes para atentar contra a sede do governo norueguês. Na sequência, ele rumou para Utoya, uma ilha a cerca de 40 km do centro da capital, onde estava sendo realizado um acampamento de jovens promovido pelo Partido Trabalhista norueguês, de centro-esquerda. Disfarçado de policial, ele atirou contra os jovens, matando 68. Os dois atentados, que deveriam chamar a atenção para a causa de Breivik, resultaram em 70 vítimas fatais.

“Posso não concordar com o que dizem, mas defendo até a morte o direito de dizer.” A frase é atribuída a Voltaire, filósofo francês que viveu entre os séculos XVII e XVIII, e ainda é relevante, especialmente numa nação democrática como a Noruega, onde um indivíduo tem o direito de ter suas próprias opiniões – ainda que sejam opiniões como a de Breivik. Afinal, negar o direito de alguém expor sua opinião é, de certa forma, negar a própria pluralidade. O que é inadmissível é que esse direito à opinião seja usado como combustível para calar opiniões alheias e ceifar vidas inocentes como aconteceu na capital norueguesa.

Ironicamente, é em Oslo que o Prêmio Nobel da Paz é entregue anualmente a pessoas que tenham contribuído para a fraternidade entre as nações e se destacado em seus esforços pela manutenção da paz mundial.

Ainda assim, sangue foi derramado na capital da paz.

Acontecimentos como esse fazem a gente se perguntar qual é o futuro do conturbado mundo pós-moderno. A Guerra Fria se foi, o mundo polarizado ficou para trás e – ainda que muita gente prefira se fechar em suas fortalezas como um caracol – as fronteiras caíram e as culturas fervilham por aí.

O vídeo Where the Hell is Matt? é resultado do trabalho de Matt Harding,
que viajou pelo mundo fazendo sua dancinha aqui e acolá,
com pessoas diferentes em mais de 40 países


O mundo não é mais apenas multicultural, mas intercultural. E, provavelmente, ele será um lugar melhor quando as pessoas dançarem juntas, onde quer que elas estejam, a despeito de suas cores, suas línguas, seus deuses e suas visões políticas. (G.P.)

Artigos relacionados:

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Sobre sabedoria

Sabedoria é resiliência,
é compreender o que é desapego,
é compreender o que é perdão,
é compreender o que é karma.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Sobre uma obra de arte pós-moderna

Há muita discussão acerca da globalização na pós-modernidade, um fenômeno talvez ainda pouco compreendido que, ao derrubar fronteiras geográficas, culturais, políticas e principalmente comunicacionais, pode, em teoria, tornar homogênea toda e qualquer forma de expressão humana.

Mas eis que às vezes surgem manifestações apátridas e interculturais que, com todo o potencial de obras de arte (abusando da referência inevitável), acrescentam novos fatores a essa equação complexa. É o caso da obra Work of Art, da cantora e compositora brasileira Haikaa Yamamoto, que é interpretada em 19 idiomas diferentes e foi composta a partir de um projeto que envolveu letristas de todos os cantos do planeta.


A canção é interpretada em turco, mandarim, grego, coreano, francês, armênio, espanhol, holandês, português, japonês, árabe, italiano, dinamarquês, cantonês, hebraico, alemão, inglês e até mesmo guarani e lushootseed (dialeto de algumas etnias nativas da América do Norte), e ao fazê-lo com aparente maestria em cada um desses idiomas, a intérprete consegue tocar num ponto que transcende o processo de cognição de uma ou outra língua: o conceito de uma comunidade cultural global, em que a expressão humana migra livremente e assume formas híbridas aqui e acolá.

Particularmente, eu acredito que esse hibridismo é uma tendência daqui para a frente, em variadas esferas da existência social, como já mencionei aqui. Se é bom ou mau, certo ou errado, cabe a cada observador fazer uso de seu maniqueísmo pessoal para julgar, mas a questão é que se trata de um fenômeno irrefreável. E diante de obras de arte como o trabalho de Haikaa, é ótimo que seja assim. (G.P.)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Mjöd, o vinho de mel


Uma receita original (G.P.)

"Não sei se cada homem que atacou Eoferwic estava bêbado, mas estaria se houvesse hidromel, cerveja e vinho de bétula suficientes. A bebedeira havia ocupado boa parte da noite e quando acordei encontrei homens vomitando ao alvorecer."

CORNWELL, Bernard. O último reino. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 33


O hidromel (também chamado de vinho de mel) é uma bebida antiga, especialmente popular nos países do norte da Europa, onde é conhecido como mjöd. Basicamente, consiste numa bebida alcoólica fermentada a partir de água e mel.

Para produzir hidromel artesanalmente, tudo que você vai precisar, além dos ingredientes descritos abaixo, é de uma garrafa vazia (preferencialmente de vidro), uma bexiga comum e um elástico.

Os ingredientes são:
- 1 xícara de mel
- Água mineral (suficiente para uma garrafa de vinho, ou cerca de 675 ml)
- 2 sachês de chá de cassis (ou outro sabor)
- Suco de 1 Limão
- 2 colheres rasas de chá de fermento biológico para pão (Saccharomyces cerevisiae)

Não é necessário levar essas proporções tão a sério. Normalmente, usa-se uma parte de mel para duas partes de água, além de outros ingredientes não obrigatórios como especiarias e frutas, dependendo do seu gosto. Neste caso, a receita é de apenas uma garrafa de hidromel acrescido de limão e chá de cassis. Comparada a outras receitas, esta usa uma grande quantidade de mel em relação à água, resultando num produto final com sabor e aroma peculiares.

Como fazer:
Primeiramente, você deve ferver a água e preparar o chá, acrescentando o suco do limão. Desligue o fogo e acrescente o mel. A essa mistura dá-se o nome de mosto.

Deixe o mosto esfriar até a temperatura ambiente antes de acrescentar o fermento biológico. Mexa-o bem e prepare-se para engarrafar. Antes, não se esqueça de higienizar a garrafa muito bem, afinal o hidromel irá permanecer nela por um longo tempo e você não quer que outros microorganismos além daqueles contidos no fermento se desenvolvam.

Feito isso, acrescente o mosto à garrafa e use a bexiga para fechar a abertura, fechando-a com o auxílio do elástico como mostra a figura.


O elástico e a bexiga servirão para que o ar do ambiente não entre em contato com o interior da garrafa. Uma vez que a abertura estiver lacrada, todo o oxigênio sobressalente no interior será consumido pelos microorganismos do fermento. E é aí que a mágica acontece: nesse ponto, o fermento começará a quebrar as moléculas de açúcar do mosto em gás carbônico e álcool. Assim, durante a fermentação, o nível alcoólico da bebida subirá até certo ponto, até que o processo se torne mais lento e finalmente pare.

Você saberá que está funcionando porque a bexiga irá inflar, e é importante que você não abra a garrafa durante todo o processo. Guarde-a num ambiente escuro e deixe o hidromel maturando por alguns meses. Depois de algum tempo, você perceberá que o fermento irá decantar no fundo da garrafa.

Quando você finalmente abrir a garrafa, filtros de papel podem ser utilizados para realizar a filtragem da bebida e obter um produto mais claro. Tome cuidado para que o fermento decantado não se misture novamente ao líquido, o que tornará o hidromel turvo.

E é isso aí, o que você terá em mãos é uma bebida artesanal muito semelhante àquela que os vikings e outros povos nórdicos saboreavam há séculos. (G.P.)

sábado, 7 de maio de 2011

O senhor que sabia voar



Durante sua vida sexagenária, ele já havia lido tantos livros de fantasia quanto eram necessários para saber que pessoas podem, de fato, voar. No entanto, ele já havia lido também muitos livros sobre aviação, física e anatomia das aves, tantos quanto eram necessários para saber que seres humanos simplesmente não têm a aerodinâmica necessária.

Mesmo assim, ele sabia que voar era possível, pois já havia conseguido. Várias vezes, na verdade. Tudo o que ele precisava fazer era estender a cabeça para a frente, abrir os braços e saltar na direção da brisa. Depois que já estava no ar, bastava guiar-se na direção pretendida e, de alguma forma, manter o corpo leve. Não era um processo natural, é claro, como ocorre para os pardais, os colibris e as gaivotas; nem sempre ele conseguia levantar voo, e às vezes esbarrava numa árvore ou num prédio. Mas, durante as décadas, ele aprendeu a controlar altitude, velocidade e direção.

Ninguém nunca o havia visto voando. Quando ele era criança, talvez aos cinco ou seis anos, todos os seus voos aconteceram quando nenhum adulto estava por perto. Sua mãe, obviamente, não acreditava que ele pudesse voar, mas era suficientemente inteligente para sorrir com bondade e encorajá-lo nas aventuras que considerava imaginárias.

Depois de adulto, foi a vez de sua esposa desacreditá-lo. “Como pode um banqueiro respeitável, com uma imagem a zelar na sociedade, manter sonhos juvenis como esse?”, dizia ela. Tudo o que ele fazia em resposta era sorrir jocosamente e dar-lhe um beijo na testa, e continuava voando naqueles momentos em que manter a imagem perante a sociedade não era uma prioridade. Voar era uma das duas coisas que lhe davam mais prazer na vida. A outra era observar os elfos que habitavam a árvore em frente à sua casa.

Os elfos eram criaturas extraordinárias. Eram muito similares a humanos, tanto em tamanho como em aspecto, mas algo neles denunciava uma presença quase extraterrestre. Eles emanavam um brilho pálido, como estrelas em forma humanóide, e estavam sempre absortos em algum tipo de labor misterioso, sistemático, que o senhor que sabia voar observava à distância. Envolvidos na metodologia de seu trabalho, os elfos caminhavam graciosamente sobre os galhos da árvore. Às vezes, o senhor que sabia voar tentava comunicar-se com eles, mas eles sempre o ignoravam, e quando ele chegava perto demais, corriam para dentro das folhagens, desaparecendo como se nunca tivessem estado ali.

Os elfos da árvore eram os únicos que o senhor que sabia voar via de perto, mas ele sabia que existiam outros elfos em algum lugar. E os elfos também sabiam voar. Às vezes, ele via grandes grupos de elfos, talvez trinta ou quarenta deles, todos usando capuzes brancos, voando a grandes atitudes de braços abertos sob as nuvens cor de cobalto, sempre do Oeste para o Leste. Ele não sabia aonde os elfos iam, mas gostava de imaginar uma terra de elfos acessível apenas àqueles que sabiam voar. Um dia, talvez, ele voaria até lá.

A primeira pessoa que, de fato, acreditou que ele era capaz de voar foi o seu neto de quatro anos. Quando ficou sabendo das façanhas do avô, nunca fez pergunta alguma em tom de dúvida. “Deve fazer muito frio lá em cima, vovô”, foi tudo o que ele disse. Em seu aniversário de 61 anos, ganhou do neto um cachecol de lã vermelha, para que ele usasse quando estivesse voando. Foi o melhor presente que alguém já havia lhe dado.

Naquele momento, porém, apesar de estar muito feliz, ele já havia começado a perceber que o tempo pode ser um companheiro deveras cruel. Dores terríveis nos joelhos tornavam difícil tomar o impulso inicial na hora de voar e o ar gelado fazia mal aos seus pulmões. Um dia, ele começou a temer que nunca mais conseguisse sair do chão. Resolveu, então, ensinar ao neto como fazê-lo. Durante longas tardes de outono eles praticavam, e às vezes observavam juntos os elfos que passavam voando numa formação em V durante o crepúsculo.

Um dia, porém, tudo acabou subitamente. O senhor foi dormir, depois de tomar o seu chá com cinco gotas de limão, e nunca mais acordou. Seu coração simplesmente recusou-se a continuar fazendo o seu trabalho. Todos pensaram que ele havia morrido, e ficaram muito tristes. Seu neto, no entanto, era o único que sabia que, na verdade, ele havia ido voar com os elfos entre as nuvens de cobalto, onde o joelho não doía e não havia a imagem de banqueiro respeitável a zelar, com o cachecol vermelho ondulando ao vento, para sempre. (G.P.)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Tragédias no Japão: opinião e religião


Sim, vou falar sobre opinião e religião. Não espero que todos concordem comigo.

Para começar:
Todos vimos que o terremoto mais forte a atingir o Japão em 140 anos aconteceu na tarde de quinta-feira, 10 de março, e pontuou uma magnitude de 8.9 graus na escala Richter. O abalo sísmico aconteceu próximo à costa nordeste do país, a uma profundidade relativamente baixa, e ainda que estragos tenham ocorrido devido ao terremoto propriamente dito, foi a tsunami decorrente do tremor que causou mais vítimas. Posteriormente, explosões e vazamentos radioativos em Fukushima lançaram ao mundo o temor de um novo grande acidente nuclear.

Até o momento, tenho dois comentários a fazer sobre a reação das pessoas deste lado do mundo. Como eu disse, não espero que todos concordem comigo.

I
Nos dias que se seguiram, ouvi muita gente – inclusive na televisão – dizendo clichês como “com a natureza não se brinca” ou então “a natureza está se vingando”, várias vezes relacionando o triste acontecimento no Japão às agressões humanas ao meio ambiente e até mesmo ao aquecimento global. E isso não faz o mínimo sentido. Basta ter um pouquinho – só um pouquinho! – de discernimento para entender que um terremoto é um fenômeno puramente geológico, sem nenhuma relação causal com as atividades humanas. Se você abraçar um panda e plantar mais de 8 mil árvores, não vai fazer diferença, campeão, porque terremotos são inevitáveis. A natureza não está punindo ninguém. (E até mesmo a relação entre aquecimento global e atividade humana ainda encontra certas linhas de questionamentos científicos. Apesar da tal “verdade inconveniente” fazer sucesso entre ambientalistas e cults que querem parecer engajados, existem trabalhos científicos que relacionam as mudanças climáticas, por exemplo, a ciclos glaciais e muito menos à atividade humana do que esse pessoal gostaria. Bom, essa já é outra história.)

II
Voltando ao Japão, vem aí outro posicionamento que considero igualmente incoerente, desta vez postado em comentários relacionados a vídeos que registraram a tsunami engolindo a cidade de Sendai. Vários desses comentários – e depois encontrei posts inteiros – relacionavam os acontecimentos ocorridos no Japão àquilo que os autores chamaram de culto a “deuses estranhos” ou simplesmente outros deuses. Outro dizia que os japoneses deveriam abraçar Jesus Cristo – o único Deus – e deixar “os seus deuses” para trás. E eu me pergunto: com que critério alguém julga um deus estranho ou não, único ou não? Particularmente, não vejo sentido no discurso de religiosos como esses, que acreditam num Deus de amor, de perdão, de compreensão e de bondade, mas que ainda assim pode se mostrar punitivo ou então omisso ao permitir que os pagãos (e uso o termo sem nenhum juízo de valor) sofram e morram apenas por não serem católicos, evangélicos ou o que quer que sejam. Não questiono a crença, mas o discurso. Penso que falta um pouco de coerência interna. E, falando por mim, a imagem que tenho de Jesus Cristo não é nem um pouco parecida com essa. Se as pessoas pudessem, de fato, conversar com Ele cara a cara, eu acredito que as atitudes que elas tomam diante de suas vidas seriam mais relevantes do que o nome que elas dão aos seus deuses. Acho extremamente incoerente acreditar que pessoas estão sendo “punidas” (ou chame como quiser) porque não seguem uma ou outra religião. O mundo seria um lugar melhor se mais gente abrisse a cabeça para aquilo que é diferente.

E é só isso. (G.P.)

quarta-feira, 9 de março de 2011

悲しみ と 苦しみ

悲しみは 不幸せであり
苦しみは 幸せの逆である。
悲しみは 心に穴をあけ、
苦しみは 心と 身体を 蝕む。
虫が本を 貪る様であり、
あるいは、蛆が 犬の死骸を貪るようである。

(2006)

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sobre Paris


A cidade amarela

“Nós sempre teremos Paris.” Mesmo quem nunca assistiu à cena final de Casablanca, clássico do cinema de 1942, já deve ter ouvido a frase emblemática ao menos uma vez na vida. Além de nos remeter à mais famosa das despedidas num aeroporto, numa das cenas que marcaria para sempre a história do cinema, a frase nos remete ao glamour e ao romantismo que normalmente se espera da Cidade Luz.



Muitos deram muitos títulos à capital francesa. Porém, se há um denominador comum adequado para defini-la, muito provavelmente trata-se de sua cor. Paris já foi chamada à exaustão de luminosa e romântica, mas provavelmente não houve muita gente que a definiu como uma cidade amarela. E não amarela simplesmente, mas amarela em suas diversas matizes, seja o dourado vibrante dos portões do Palácio de Versalhes, o marrom desbotado das torres de Notre Dame ou o bege das paredes do Louvre.



Amarela ou não, Paris continua sendo Paris. Estar diante da Torre Eiffel, o monumento pago mais visitado do mundo, ainda é um sonho de consumo para muita gente. A torre, diga-se de passagem, é o maior cartão-postal da cidade e hoje pode ser um orgulho para os parisienses, mas não foi bem vinda durante sua construção. Projetada por Gustave Eiffel, ela foi construída para receber a World Expo em 1889, a mesma exposição cuja última edição foi realizada em Xangai. Naquela época, contudo, os moradores de Paris consideraram que a torre iria contrastar com o panorama da cidade. Mal sabiam eles que, décadas depois, a torre simplesmente seria o panorama da cidade; hoje não existe Paris sem a Torre Eiffel.



Mas Paris, é claro, tem outros pontos de visitação. Para quem desliza pelo Sena a bordo de um bateau-mouche, como são chamadas as embarcações turísticas que navegam pelo rio, haverá um momento em que surgirá uma ilha no caminho. É lá que fica o marco zero da cidade, gravado no piso de pedra sobre o local onde antigamente habitava um povo de origem celta, os parísios, que posteriormente emprestariam seu nome à capital da França. É lá que está também a Catedral de Notre Dame, com suas torres góticas cobertas de gárgulas, nas quais o mítico Corcunda batia os sinos.



Não muito longe dali, não mais na ilha, está o Museu do Louvre, lar da Mona Lisa e outras centenas de obras de arte não menos importantes como, por exemplo, La Liberté guidant le peuple (A Liberdade guiando o povo), pintura histórica de Eugène Delacroix que retrata a liberdade como uma mulher de seios nus carregando uma bandeira à frente da Revolução Francesa.





Foi ela, a liberdade, quem guiou o povo enfurecido ao Château de Versailles em 1789, de onde Luís XVI e sua rainha foram levados para a guilhotina. O palácio, que é um dos pontos turísticos mais visitados da França, foi construído por Luís XIV, o Rei Sol, a partir de um pavilhão de caça. Desde os portões dourados, passando pela opulenta Galeria dos Espelhos e continuando até os jardins, o palácio representa todo o luxo de uma realeza que arrancava suspiros de indignação do povo, até que este, de fato, se indignou e decidiu arrancar algumas cabeças.



E, por falar em arrancar suspiros, é difícil compreender exatamente o porquê de Paris ser, entre tantas outras capitais, a escolhida para fazer suspirar pessoas em todos os continentes. Outras cidades têm mais luz, outras cidades têm mais glamour e outras cidades são mais românticas. Contudo, Paris é amarela. Talvez seja exatamente por parecer uma grande e amarelada fotografia em tons de sépia que a cidade exerça tamanho fascínio, fazendo as pessoas pensarem que a terão para sempre, como os protagonistas de Casablanca. (G.P.)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sem título


"Existem muitas pessoas no mundo...
Existem muitos sonhos diferentes.
Eles se chocam...
Causam lágrimas e risos...
Quantas pessoas são capazes de realizar os seus sonhos?
Quantas pessoas ficam satisfeitas com os sonhos que realizam?
Ninguém tem a resposta a essas dúvidas."

TAKEI, Hiroyuki. Shaman King. São Paulo: Editora JBC, 2005. v. 37. pp. 18-20


Um brinde a isso.


quinta-feira, 13 de janeiro de 2011